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"O que se faz agora com as crianças é o que elas farão depois com a sociedade." (Karl Mannheim)

terça-feira, 6 de abril de 2010

A vida em um abrigo

        Reportagem da Revidta Marie Claire:
      Ninguém sabe ao certo quantas crianças e adolescentes vivem hoje em abrigos. Abandonados pelos pais e rejeitados por quem quer adotar, a maioria fica ali até os 18 anos, transformando em solução definitiva o que deveria ser uma passagem provisória. Só que, diferentes dos antigos orfanatos, essas casas vão além do 'acolher': quem passa por lá não escapa da dor de crescer longe da família, mas fica mais perto da chance de poder mudar a própria história.   
Meninos da mesma faixa etária dividem o quarto no abrigo Reviver, em São Paulo(foto )
     A campainha toca. Duas crianças atravessam um pequeno jardim e entram na sala. Largam as mochilas no chão, rodeiam Regina, beijam, abraçam. Pedro* começa a contar as novidades da escola. Kelly* pede colo e bolo. Com voz carinhosa, mas firme, Regina anuncia que 'bolo, só no lanche', depois do banho, e despacha os dois para continuar conversando com sua visita. A cena só não é idêntica à de qualquer casa porque Regina não é a mãe dessas crianças e está recebendo a reportagem de Marie Claire. Estamos num abrigo. Parece uma casa e, para milhares de jovens que não contam com suas famílias, realmente é.
Vinte e três crianças vivem no sobrado onde funciona o abrigo Rita Luiza da Cunha, em São Paulo. São 20 as vagas 'oficiais', mas o número sobe quando chegam grupos de irmãos, sempre alojados no mesmo quarto. Quem não tem parentes divide o espaço com até cinco crianças, separadas por sexo e faixa etária. Nos cômodos, que não são grandes, todos os beliches estão arrumados com colchas coloridas e os armários sem portas chamam a atenção pela organização. Na sala principal, perto da estante de livros, dois pequenos assistem à TV, hipnotizados. Logo ali, uma assistente social dá mamadeira para um bebê, enquanto um grupo de maiorzinhos brinca ao ar livre, num pátio espaçoso. A cozinha acaba de ser arrumada por uma funcionária, com a ajuda de Jaqueline*. Na saleta próxima à copa, meninas de 13 a 15 anos estão se produzindo: enquanto Bianca* passa sombra nos olhos e brilho na boca, Claudinéia* faz chapinha em Juliana*. Todas querem dar entrevista.

LONGA PASSAGEM
A pedagoga Regina Moutinho faz parte da Casa de Habilitação Filosofia e Cultura (Chafic), uma organização não-governamental ligada a dois abrigos, o Rita Luiza e o Pinheiros. Como outras casas, ambos recebem verbas da Prefeitura (para gastos com pessoal, aluguel, roupas e alimentação dos abrigados) e contam com parcerias de ONGs, que bancam atividades como aulas de dança, cursos técnicos e terapia individual. 'Esse apoio é importante para que eles consigam lidar com a perda e o abandono', diz Regina.

Família
O Instituto da Criança e a ONG Semear se encarregam de muitas demandas do abrigo Reviver, que hoje acolhe 41 crianças, de 0 a 18 anos. 'A comunidade também ajuda. Quando precisam de dentistas, por exemplo, nossas crianças são atendidas gratuitamente por profissionais do próprio bairro', afirma Deise Caetano Berbeire, que dirige o Reviver desde 1999.
Não se sabe quantos abrigos existem no Brasil -esse censo está sendo feito pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Também por isso não é possível dizer se todos estão dentro das normas do Estatuto da Criança e do Adolescente. A partir delas, os antigos orfanatos seriam substituídos pelos atuais abrigos, com um projeto diferente: além de dar teto, essas instituições passariam a proteger quem tem seus direitos violados -o que inclui abandono, maus-tratos e violência física ou moral, entre outros problemas causados por pais que vivem em situação de miséria, desemprego, prisão, alcoolismo.



Andressa* tem 8 anos e ajuda o pequeno Álvaro* com a mamadeira (foto)

Além de garantir escola às crianças que chegam, sempre encaminhadas pelas varas da infância e juventude, os abrigos têm a meta de trabalhar junto às famílias na tentativa de restabelecer os vínculos entre pais e filhos. 'Até porque menos de 10% dos menores abrigados são, de fato, órfãos', diz o juiz Francisco de Oliveira Neto, da Comissão Estadual Judiciária de Adoção de Santa Catarina. A idéia é cuidar da criança até que a família se reestruture e possa recebê-la de volta, pois a teoria diz que a passagem por essas casas deveria ser provisória. Mas a prática, infelizmente, é outra: a maioria das crianças permanece nos abrigos, esquecida pela família. Mesmo abandonadas, só podem vir a ser adotadas quando os pais biológicos são destituídos pela Justiça do pátrio poder -um processo que dura, no mínimo, dois anos. Quando (e se) entram na fila da adoção, ficam atrás dos candidatos mais disputados: os recém-nascidos, sem pais conhecidos e de pele clara. Quem consegue uma nova família muitas vezes muda de país -a adoção por estrangeiros é comum. Mas esse não é o sonho da maioria. 'Eles realmente desejam uma família. Só que, antes de qualquer hipótese, sempre querem a mãe. Mesmo que ela tenha judiado ou deixado passar fome', diz Deise.

Terapia
A VIDA COMO ELA É Os abrigos não 'fecham', e os educadores se revezam 24 horas por dia. Alguns cuidam só dos remédios e das idas a médicos. Outros acompanham as crianças até a escola com o motorista, e sempre estão junto dos pequenos nos passeios. As crianças festejam os aniversários, convidam amigos e são convidadas. 'Combinamos quem vai levar e buscar, como todos os pais fazem', diz Maria Luiza Mafra, diretora do abrigo Pinheiros. 'Muitos dos que têm família podem ir para casa no final de semana, e o abrigo estimula esse contato dando cesta básica e vale-transporte para os familiares.'



Além de dividir tarefas, meninas costumam cuidar umas das outras (foto)

Os adolescentes que têm autorização podem ir e vir livremente. Estudam, mas começam a trabalhar a partir dos 16 anos. 'Daí abrimos uma poupança em nome do adolescente e do presidente da organização. Como as despesas são garantidas pelo abrigo, ele deposita grande parte do que ganha. É com essa poupança que muitos começam a vida pós-abrigo', diz Deise. Por lei, a saída deveria acontecer aos 17 anos e 11 meses, mas a maioria estica esse prazo, porque não têm para onde ir. É rotina dos educadores ajudá-los a encontrar moradia e até a escolher os eletrodomésticos. Com as garotas, a história às vezes se repete: ansiosas para serem as mães que não tiveram, logo engravidam de filhos que irão para um abrigo... Mas também há as que sonham com uma vida diferente e estão lutando por isso. São meninas como Cristina*, que está saindo em breve; Márcia, que já mora com o filho há nove meses; e Angélica, que vive sem a proteção do abrigo há vários anos.

Prestes a deixar o abrigo, Cristina* tem planos de ir ao encontro da mãe, que não vê há muitos anos

O abrigo é legal, mas meu sonho é morar sozinha' Cristina*, 17 anos(foto)

''Tinha 13 anos quando vim para cá e, hoje, vejo que foi bom. Eu era fechada, não falava com ninguém. A convivência com o pessoal daqui e com a psicóloga me ajudou bastante. Se não fosse isso, não ia saber que gosto tanto de dançar, não ia me conhecer como me conheço. Podia ter virado uma pessoa amarga, rebelde.Tudo aqui é legal, mas, hoje, sinto necessidade de ter momentos só pra mim, sem ninguém por perto. Tenho muita vontade de morar sozinha.



Não sei direito o que aconteceu com a minha mãe. Eu era pequena quando ela e meu pai se separaram.Vivi com minha avó, umas tias, mas perdi o contato com elas. Tenho um irmão, que também está no abrigo. Moramos com meu pai quando eu tinha 11 anos, mas não foi bom. Toda noite ele saía, voltava de madrugada, não deixava dinheiro... Não sei mais dele. Mas o pessoal do fórum localizou minha mãe. Ela mora em Minas, está doente. Parece que ela não lembra do que aconteceu. Mas quero ir até lá quando sair daqui. Claro que estou com medo de ela não me reconhecer, mas vou mesmo assim.

Rotina

Além de estudar, os jovens trabalham a partir dos 16 anos

Estou terminando a 7ª série e faço estágio numa empresa de Paisagismo. A rotina é corrida, mas eu sou uma pessoa calma. Minhas amigas gostam de balada, a vida delas é meio desregrada. Elas dizem que queriam ter um pouco da minha calma. Sou sossegada mesmo, não bebo, não fumo, gosto de cuidar de casa. Quando cheguei aqui, meu quarto era um brilho só, eu limpava e arrumava o tempo todo. Aprendi que precisava relaxar um pouco. Acho que as casas em que morei eram bagunçadas, daí fiquei com essa mania de arrumação... Acho que eu gostaria de ter sido adotada. Sei lá, por alguém de que eu gostasse. Mas não aconteceu. Tenho uma 'madrinha', que é muito legal e sempre investiu em mim, só que nunca foi uma coisa tipo adoção.
Casar? Pode ser, se me apaixonar. Não penso nisso. E filho, se eu tiver, bom, ele vai ser tipo um rei. Não quero que ele sofra com nada.'

Márcia passou a maior parte da adolescência no Butantã.Na foto abaixo, o pátio do abrigo
O abrigo é uma chance. Às vezes, a única'
Márcia Maria do Nascimento, 20 anos

''As coisas começaram a ficar ruins quando meu padrasto abusou da minha irmã mais velha. Além dela, tenho mais duas irmãs, filhas da minha mãe com esse homem. Nessa época, ela abriu um processo contra ele, que morreu logo depois. Eles tinham um bar e, quando estavam juntos, ela cuidava do lugar. Já bebia uma ou outra cerveja. Mas, depois da morte dele, foi se viciando até virar alcoólatra. Daí pra frente, só piorou. Ela também morreu, faz seis meses.


Num dos interrogatórios desse processo, o juiz percebeu que minha mãe não estava bem. Logo descobriram que a gente não estava indo pra escola. Minha irmã mais velha, hoje com 23 anos, já tinha ido embora, e a avó das mais novas tirou as meninas lá de casa, porque nossa mãe estava agressiva, batia na gente... De repente, ficamos só eu e ela.

Dos 9 aos 13 anos, cuidei dela, e tinha uma supervisão das autoridades. Ela não trabalhava. Então, eu olhava umas crianças da vizinhança, passava roupa, ganhava um troco que nos sustentava. Perdi o contato com minhas irmãs, porque a avó delas não queria saber da gente. Depois de ter sido chamada no fórum várias vezes e nunca comparecer, minha mãe perdeu minha guarda. Sofri muito porque não queria sair de perto dela. Estava com uns 13 anos e já namorava, mas só soube que tinha engravidado quando cheguei no abrigo.

Adoção

'Órfãos de pais vivos', os abrigados ficam no final da fila
No começo, as educadoras conversavam comigo sobre não engravidar de novo, até porque o namoro com o pai do meu filho continuava. Ele é mais velho e queria casar, mas era ciumento, achava que eu tinha que cuidar do bebê e parar de estudar. Acabou não dando certo. No abrigo, me deram força pra continuar os estudos. Tive casa, comida e colo. Não estaria onde estou se não tivesse ido pra lá.

Eu já estudava no Porto Seguro desde pequena. Graças a Deus, minha formação foi ótima. Mesmo grávida, continuei a freqüentar as aulas. Usava roupas largas, morria de vergonha da barriga. O Ricardo nasceu pouco antes das férias e foi crescendo comigo, no abrigo. Estudava de noite, quando comecei a trabalhar como auxiliar de escritório. Colocava todo o dinheiro na poupança, mas, quando estava pra sair do abrigo, perdi o emprego. A sorte é que tinha feito um curso de manicure, por insistência das educadoras. Na época, achei que era bobagem, mas foi assim que comprei o cômodo onde moro. É um lugar humilde, mas já foi uma vitória.


Namoro o Fernando desde o colegial. No começo, foi difícil lidar com a família dele. Nunca falaram nada, mas a gente percebe quando as pessoas têm um certo preconceito... Aos poucos, eles foram me conhecendo e hoje me aceitam. Gostam do Ricardo, são verdadeiros pais para mim. O preconceito existe. Quantos empregos não perdi por conta disso? Quando dizia que morava num abrigo, eu ia para o fim da fila! Mesmo explicando que abrigo não é lugar de infrator, ninguém entendia. A verdade é que as pessoas não sabem o que é um abrigo.
Já tinha mais de 18 anos quando saí. Tive medo e adiei o quanto pude. Mas eles me ajudaram. Cuidaram do Ricardo até que eu pudesse trazê-lo pra morar comigo. Quem vai para um abrigo e não se dá bem é porque não quer saber de nada. Pra quem sabe aproveitar, é uma chance. Às vezes, a única.'
Angélica e João Vitor, de 5 anos: 'Nunca pensei em deixar meu filho num abrigo. Nem nas piores horas'

Podia ter seguido o caminho da minha mãe'

Angélica do Nascimento, 27 anos (foto)

''Sou a mais velha de cinco irmãos. A minha mãe, mal conheci. Nasci e ela me deu pra uma mulher. Aparecia de tempos em tempos com mais um filho e largava lá. Sei que ela nunca teve casa, morava de favor, era de zoeira. Do meu pai, só sei que não prestava. Ele era padrasto da minha mãe. Já viu, né? Começou tudo errado na minha vida.
Ficamos com essa 'tia' até que ela deu um basta na minha mãe. Eu tinha uns 10 anos. Por uns dois meses, moramos na rua, no Brás, junto com ela. Até que fomos recolhidos e 'distribuídos' por vários abrigos. Demorou um ano até a gente se reencontrar num outro abrigo. Daí ficamos no mesmo quarto, como uma família. Como eu era a mais velha, tomava conta deles, chamava a atenção, ensinava as coisas. Apareceu gente querendo adotar um ou dois de nós, mas eu nunca quis. Dizia pras assistentes sociais que preferia manter a família unida. Como a gente nunca teve mãe e pai, pelo menos nós íamos ficar juntos. As assistentes diziam: 'Você não gostaria que seus irmãos tivessem uma família?'. Não, poxa! Afinal, tinha eu. Naquele tempo, eu pensava que um dia a gente ia ser uma família...
Terminei o 3º colegial, tenho o certificado, mas não me sinto preparada pra nada. Fui a primeira a sair do abrigo e logo engravidei. O pai do meu filho sumiu. Eu tinha algum dinheiro guardado pelo abrigo, e o pessoal me ajudou a comprar material de construção. Fiz um andar em cima da casa daquela 'tia', a mulher que ficou com a gente na infância. O lugar é humilde, mas pelo menos não pago aluguel.



Amigos da escola vêm para as festas (foto)

Quando fui morar sozinha, não sabia fazer nada. No abrigo, a gente tinha tudo na mão! Logo veio a Luciana. Depois, o André. E daí assinei os papéis pra tirar o Vinicius do abrigo, aos 16 anos. Achei que, enfim, a gente ia ser uma família, mas não foi assim. Cada um fazia o que queria, eles nunca me ajudaram em nada. Quando fiquei desempregada, um dos meus irmãos já estava trabalhando como entregador de marmitex, mas nunca perguntou se precisava de leite pro meu menino... Hoje me arrependo de não ter deixado cada um seguir seu rumo. Agora sei que a minha família sou eu e meu filho.

Trabalho na copa de um restaurante. É puxado. Meu sonho é morar num lugar que seja meu, só com meu filho. Também quero um serviço melhor, com horários menos complicados. João Vitor está com 5 anos e eu namoro um moço que também era do abrigo. Ele é promotor de vendas de um supermercado. Não julgo minha mãe, ela tinha cabeça fraca e teve os motivos dela pra levar a vida que levou. Mas fico brava quando dizem que sou igual a ela. Não é verdade! Tenho 27 anos e não tive 'um monte' de filhos. Sei que errei, tive este cedo demais. Mas, depois, me preveni, e não vou ter outro enquanto não puder dar tudo. Posso, sim, dar o que eu não tive. Carinho, amor, até exagero nisso! O João Vitor é mimado. O abrigo me deu moradia, me regrou, eu podia ter caído na droga ou feito o mesmo caminho da minha mãe. Sou uma pessoa honesta. E não tenho revolta, me sinto vencedora, apesar de tudo. Já me vi em situações difíceis, desesperada, mas nunca pensei em deixar meu filho. Não dá pra achar que isso podia ser melhor pra ele. Não que o abrigo seja ruim, pelo contrário. Mas mãe é mãe.'

*Os nomes das crianças foram trocados
http://revistamarieclaire.globo.com/Marieclaire/0,6993,EML1663061-1740-2,00.html

3 comentários:

  1. adorei , tudo qe eu estava procurando para meu trabalho

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  2. esse site me ajudou com um trabalho ele e muito bom (assecem)

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  3. Olá, como faço para visitar um abrigo. A principio tenho interesse em ser voluntaria e depois apadrinhar uma criança.
    renatapr23@hotmail.com

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